O amor quando acontece depois

Colunistas Geral São Sepé

Tenho prova guardada em gaveta de que ninguém ama verdadeiramente sem que tenha percorrido antes um sinuoso trecho na estrada das alegrias e também dos desencantos. As contínuas encruzilhadas semeadas à mão cheia pelo inventor obrigam-nos a optar por uma das veredas, quando mal não teria se pudéssemos escolher as duas, até como forma de prevenir algum arrependimento que virá tardio pela preferência equivocada. O ideal seria a gente já nascer sabendo amar, e é pena a vida não se transfigurar pelo avesso, como gostaria Chaplin, embora voltar a ser criança depois de velho não seja garantia de nada, pois nada na vida tem qualquer garantia. Se palmilhando é descoberto o caminho, o vestígio dos passos traduz na metódica trena do tempo o que teremos pela frente, ainda que incertas sejam todas as trilhas a nos esperar além do arco-íris.
Bem movediço mostrou-se pelos anos o terreno das afeições. Nunca se sabe onde a pisada aflora mais segura, e os doidos enganos sentimentais moram nas dobras do terreno pantanoso que se transpõe mesmo com cuidado. Quando surge a impressão de que o piso é rochoso, o chão nos surpreende com cara de brabo e se abre feito um leque daqueles usados pelas damas de antigamente, arrastando sem pejo as ilusões para a parte da terra com fundura sem limites. Por vezes, melhor seria passar ao largo, despistar com discrição, mas existe em nós uma irresistível necessidade de abrir picadas no breu, a fim de se descobrir duradouro na aventura dos sentidos.
Dizem os terapeutas que gostar em demasia da outra pessoa faz enxergar através de um único olho, pois o outro prossegue fechado para manter o vínculo. Olhar através dos dois olhos é flagrar os defeitos que aniquilam a mais intensa das paixões. A busca do amor imperecível começa na adolescência, e com ela o aparecimento das primeiras privações de uma alma inquieta igual as birutas em ventania. Seria o caos para tantos meninos febris de enlevo, desde que soubessem, é claro, onde realmente fica o tal de fim do mundo.
Mais tarde, já no verdor da juventude, o ímpeto da veneração pela única flor vicejante da espécie humana ganha contornos passionais. Nada está acima do arrebatamento ardente, sequer a desgraça da penúria em sua ronda sorrateira pelos barracos do arrabalde. E até no autoextermínio quem ama sem as peias do racional encontra uma forma de desafogo, de livrar-se de uma vez por todas dos infortúnios que o coração sente e não pode se queixar ao dono. Mas é na maturidade que as escolhas perenes acontecem, quando a roda propulsora da excitação dos amantes começa a apresentar desgaste visível a olho clínico. O mar das inquietudes sensitivas torna-se mais sereno, sem as ondas que levam de arrasto o que cai na rede depois que a faixa de areia beija as ruas da cidade. Ama-se com a calma dos navegantes solitários, e um afago inesperado no permeio da noite não se confunde mais com o ofegante gesto erótico. As coisas se amainam. A gana incontrolável do prazer se transforma em delicado brinde à luz de velas. Não se pertence ao parceiro, e os dois fazem parte do todo indivisível. A fúria das cobranças cede à cumplicidade de um silêncio construído sem o barro fétido da malquerença. A felicidade dividida apaga o muito que já se sofreu sozinho. Cessada a procura, é hora de partilhar palavras de estímulo tecidas junto ao mesmo travesseiro, de traçar planos para os dias ensolarados que virão, e repartir pelas invernias de chuva e vento a angústia pelo sofrimento dos homens.

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