Pelas minhas contas, acho que passei a comer carne assada desde quando fui visitado pelos dentes na tenra idade. Não recordo ao certo a efetiva data em que tudo aconteceu. Presumo que principiei realmente o exercício da mastigação de assados de variados semoventes depois do surgimento da definitiva arcada dentária na caverna bucal. Descontado, é claro, um tempo infausto de estudante de cursinho pré-vestibular do Riachuelo, em que a peladura me fez vegetariano na marra. Era só massinha miojo de caramujinho…
Mas isso não guarda nenhuma relevância para o assunto doravante tratado. Aliás, nem mesmo um retardado poderia estar interessado no período de vigência da minha atividade carnívora. Este talvez seja o maior pecado de um cronista primaveril: enquanto mães fogem das bombas da guerra na Ucrânia com uma mochilinha nas costas e um filho em cada braço, sem saber para onde ir, ele acredita piamente que alguém possa se importar por assuntos telúricos, coisas do tipo casinha no campo com flores no alpendre e beijos de língua furtados suavemente no escondido dos avarandados. É uma nútria, um caco de gente que pensa ser literato. Pobrezinho dele!
Voltando à vaca-fria: determinou o Diário Oficial do Estado que o churrasco deve ser feito somente de um jeito, para honrar a tradição dos nossos bacudos antepassados. Tem que usar apenas sal grosso, espeto na vala e controle exclusivamente manual, sem equipamentos eletromecânicos. Ou seja: morte à barbadinha da churrasqueira rotativa. Este time muito mais idoso do que eu – assaltam-me de pronto as imagens do meu primo Nassifinho, do Paulo Renato e do Tavinho, três renomados causídicos com atuação efetiva na comarca local e que sempre tiveram sérias divergências jurisprudenciais com o artefato esférico – deve estar bem recordado do que era o sabor do churrasco nos torneios de futebol na campanha. Um cheiro que não senti parecido nem no mais fino restaurante especializado. Um segredo involuntário que o peão trazia na mão rude desde os tempos das cruentas revoluções em que a defesa da cor do lenço valia mais do que a vida do próprio irmão.
Escolhia-se praticamente dentro do boi o pedaço de carne que iria para o fogo de lenha perfumada. Ou da distinta e recatada senhora do touro, caso o úbere também estivesse disponível no varal. Os espetos eram feitos de pitangueira e a salmoura aplicada com manojo de carqueja. Comia-se lá pelas duas da tarde, no intervalo de um jogo e outro. No acompanhamento, apenas pão de forno, fome e cerveja à meia-boca.
Faz um tempão que não vou a torneios, que me fazem lembrar sempre do Ciro, um craque – jogou até no Grêmio – e uma das pessoas mais amáveis e educadas que conheci por aí. Quando ele chegava no torneio era uma tristeza geral dos outros atletas, pois a taça já passava a ter dono.
Nem sei se ainda existe campo de futebol no interior de São Sepé, depois que a soja voltou a pegar preço na Bolsa de Chicago. Mas me prendam o grito caso saia algum lá para os lados do Tupanci, do Terceiro, do Cerrito do Ouro. Aliás, sendo certo que o Tupanci é o centro do mundo, o Lageado Grande, de onde sou egresso por derivação, deve ser algum anel da circunferência, posto ser localidade “satélti” do distrito-mor.
Vou nem que seja como manobrista de caminhão boiadeiro – sim, já vi time chegando num deles lá no Edomenes, agarrado à carroceria de madeira que nem velha em moto, e levantar o caneco nos pênaltis! É que hoje para mim vale bem mais que ler um livro complicado de Direito poder arrancar nacos de um granito escorrendo sangue, à sombra da velha figueira do mato.
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