A relação de dependentes

Colunistas Geral

Na última semana bateu à minha porta ao entardecer um senhor com ares de autoridade. Portava, além do boné e da máscara, uma enorme bolsa a tiracolo, grávida de oito meses de tanto papel solto e formulários. A princípio, pensei que trazia algum dossiê escabroso para colher meu inestimável parecer de jurisconsulto escolado. Vi que tinha um crachá junto ao peito: era um enviado do censo demográfico recém principiado. Já abancado por deferência no melhor da sala, sua primeira pergunta, desdobrada em duas, foi de quantos éramos e quantos dependentes tínhamos. Respondi que há pouco tempo atrás éramos quatro aqui em casa, o casal e os dois filhos. Sobre os dependentes, esclareci:

– São dois, eu e minha mulher.

Ele ficou sem entender nada. Achou até que eu estava de gozação, querendo caçoar do seu digno trabalho em proveito do avanço social do país.

Expliquei ao recenseador que, quando um filho, com sua minúscula mão, aperta pela primeira vez qualquer de nossos dedos, nos fará prisioneiro para sempre. E assim, nós é que somos seus dependentes. Se fosse pela gente, moraríamos num minúsculo apartamento, mas acabamos residindo num casarão inseguro, pois eles precisam de muito espaço para reunir a sua exótica tribo. Nem nossas férias nos pertencem. Por vontade própria, passaria a folga anual no mato, pescando na beira de um rio corrediço, mas terminamos nos socando na praia que estiver bombando mais, só por causa das crias.

Eis o teste: seu filho está num intercâmbio cultural na França, e você liga para ele a fim de dar a notícia de que terá de passar por 12 sessões de quimioterapia. Ele ficará triste, talvez chore, mas não o acompanhará a nenhuma sessão; não voltará, pois tem sonhos urgentes que aguardam um desfecho na primeira fila das joviais inquietações. Já em situação inversa, por muito menos atravessaremos o oceano, nem que seja a braçadas, e no dia seguinte lá estaremos, vendo se ele precisa de alguma coisa, uma torrada com ovo, um leite quente, sei lá – e nós na doce ilusão de que um afago paterno seria a melhor das soluções.

Gibran dizia que somos somente arqueiros, e nossos filhos são as flechas. Compete a nós arremessá-las. Assim será. Um dia eles partirão em busca da lua que os pais não puderam alcançar. E não se iluda: todos partem. É tudo uma questão de tempo, ou de oportunidade, tanto faz. Na despedida, com o coração estraçalhado, diremos que a casa é um lugar para se voltar, e não para morar, na esperança de que o argumento os comova e retornem quando menos se espera.

Vieram as perguntas seguintes do homem da pesquisa governamental: quantas televisões tínhamos, quantas geladeiras, quantos carros, qual o salário da unidade familiar, se eu tinha mãe viva, se enxergava bem com ambos os olhos, se era portador de alguma deficiência mental, e daí por diante. Vejam só: não indagou se eu era feliz, se eu, com a minha idade, ainda acalentava alguma ilusão pendente de agasalho, se tinha me casado com o amor da minha vida. Nada disso. Mas compreendo o questionário do burocrata andarilho, chegado a números e estatísticas. Letras e sentimentos dizem mais de perto com a loucura insalubre dos poetas…

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