Lá no cemitério municipal

Colunistas Geral

Falei em casa mais de uma vez: quando eu me for desta para a tão falada melhor vou dispensar a cremação. Não sei se algo mais que a matéria queima junto naquela fogueira medonha que nos reduz à munha. Vá que asse parelho com a ossamenta também a aba do telhado da essência, e aí pode me complicar na lida solene da reencarnação Por via das dúvidas, serei enterrado à moda antiga, com a parceria me paleteando rua afora rumo ao camburão funerário, e fixar “ad eternum” a residência no Cemitério Municipal, ao lado dos familiares que já se mudaram para lá, dos meus amigos e conhecidos de vista.
Logo que chegar na necrópole – provável que um tanto contrariado – irei procurar de vereda a minha turma, para saber das últimas novidades relacionadas com o shopping das almas. Já me disseram, de fonte segura, que o que tem aqui na terra tem lá por cima, sem tirar nem pôr, e em qualquer quantia. Então, se é assim, vou ver com o Alfredo Ineu, o Guaiaca e o Tono se tá dando peixe também na minguante nos açudes e rios do outro lado do firmamento. Imagino que esses três, na calada da madruga, e com uma de cana na sacola, colocam linhas de esperas, boias loucas e alguma rede “mata-fome” em pesqueiro reservado pras bandas da Hípica.
Quero sentar à mesa grande de um bar, que presumo exista nos fundos do fossário, e reunir o Augusto, o Fininho, o Sargento, o Barbatana e toda aquela gente cativa do aperitivo no Bar do Deluy – ele junto, óbvio -, e colocar em dia os assuntos que ficaram pendentes quando da partida antecipada de cada um deles. A palavra será “molhada” com muita calma e parcimônia, sem qualquer pressa, pois, afinal, o que mais teremos é tempo, muito tempo, todo tempo do mundo, que é como dizem por aqui quando não se tem pressa para fazer as coisas que ainda aguardam solução de parte.
Falaremos dos bailes no Comércio, das boates no Bento, dos torneios de futebol no Edomenes, no Ipê, na Colônia Antão Faria. Alguém dirá: mas os bailes, as boates, os torneios, tudo isso não existe mais. E o da ponta da mesa irá responder de bate-pronto, enquanto pede mais uma cerveja ao Vicente: mas e daí? Nós também não!
Ali, naqueles becos estreitos e travessas sem CEP que circundam os endereços das residências definitivas, almas bondosas fazem o seu passeio noturno e conversam na paz do Senhor com a vizinhança que também se transferiu para a povoação dos espectros.
Mário Porto, recém-chegado no lugarejo cerimonioso, trata de organizar o tradicional Canela de Zebu, conseguindo com o Manequinho o boneco pra ser colocado na frente do bloco carnavalesco, que sairá em desfile por entre as carneiras entoando a Jardineira e Mamãe Eu Quero.
A benzedeira Gabriela, com aquele gingado exclusivo, perambula toda de vermelho pelas ruelas do lugar silente, afastando a preço de nada o mau-olhado e quebranto dos que não conseguiram se livrar dos tais incômodos terrenos. Logo atrás, em distância regulamentar, o Pai Dentão também oferece os seus préstimos mediúnicos e estudos espirituais para quem deles precisar.
Todos os sábados – à exceção do Dia de Finados, por evidente – o Almerindo e mais o barbeiro Assis reúnem no horário do crepúsculo o pessoal da bandinha Paz e Concórdia, que, diga-se de passagem, já se mudou em peso para o dormitório eterno. A reunião dançante, com muito fox trotter saracoteado com alegria por entre as sepulturas, vai até o clarear do dia, hora em que os músicos e bailarinos têm que retornar para as suas tumbas, conforme regramento antigo vigente na prefeitura.
Portinho continua solteiro e publicando o seu semanário, onde noticia os proclamas de casamento entre os mortos, aniversários dos atualmente falecidos e quem está por chegar ao subsolo da derradeira morada.
Aos domingos toca o sino noturnamente, em badaladas enternecidas, e os moradores do sepulcrário se dirigem à igrejinha para escutar os sermões do Padre Erasmo Dal’Asta e do Monsenhor Mário Deluy, que, aliás, nunca se cansa de agradecer a todos aqueles que ajudaram a construir a Igreja da Matriz, o Hospital Santo Antônio e o monumento no meio da praça, que recorda a fundação da cidade por Francisco Antônio de Vargas e seus seguidores.
É bem provável que o Zé Paulo já esteja montando novamente o conjunto musical Os Centauros para as domingueiras. O Antônio Kraemer e o Napoleão estão a postos, e os instrumentos tinindo. Quando o Napoleão estiver ocupado com uma “corrida” mais longa pela vastidão do campo santo, o meu amigo de Jazidas tem à mão de semear para substituição os gaiteiros Tio Mino e o Betinho Gazen. Com qualquer um deles ficará muito bem servido.
O renomado vate Vicente Pereira comanda nas quintas os saraus poéticos, onde têm também causos, versos de aporfia, melodias e outros quejandos. Jarbas Moreira e Cirto Curto abrem o evento noturno com a trova de martelo, saindo lasca de cada estrofe. Faim declama baixinho Lobo da Costa, acompanhando-se ao violão, enquanto Chupim e Jorge Brum cantam em dueto modinhas que, de tão velhas, também estão enterradas naquele cemitério.
O Seu Frederico Magalhães pede a palavra, naquele feitio manso de sempre, e declama os versos de sua lavra e que estão na lápide onde ele dorme o sono eterno dos justos: “Vão meus versos terminar minha história/Que ficará para sempre na memória/Neste álbum de versos que escrevi/Com letras do meu punho está firmado/Os sonhos de ilusões de meu passado/Escritos neste álbum para ti”.
João Grande conta para a finada assistência uma visita que fez, quando ainda era vivo, para o parente Divanir, dando início à sessão de causos e acontecidos: “tio Canica: adquiri um chalé perto do Paulo Afonso Fachin, mas o mosquital que tem por lá é coisa botada, nunca vista. Pro combate ao inseto fui no Tronco e comprei um cata-vento deste tamanho, com controle remoto e velocidade 15. Me pelei numa noite calorenta e fiquei no aguardo do bicharedo assobiador. Quando já tinha um meio quilo de pernilongo sobre a maçã do peito, bebendo sangue de cano cheio, acionei a ventoinha no 15 e esperei o estouro da boiada. Quando acendi a luz para ver o estrago, tinha mosquito grudado na parede com fratura exposta…”
No encerramento da noite de gala, o organizador sobe no sepulcro onde repousa durante o dia e, braços abertos, melena esvoaçante ao vento, recita os seus versos mais famosos: “no cimo agreste da montanha fria tem teto a águia solitária e errante”.
Morrerei em um dia qualquer dos que virão, e serei levado pelos amigos para o Cemitério Municipal de São Sepé, fazendo companhia a tanta gente querida que habita aquele recanto sagrado. Não tenho receio que alguma coisa não saia como eu esperava quando da transferência de domicílio. Tenho, isto sim, uma expectativa enorme de abraçar e beijar o meu pai quando lá chegar, e é muito provável que durma aninhado com ele como fazia nas noites de chuva mansa lá no Lajeado Grande…

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