No antanho bem distante não havia ainda as capelas mortuárias do Asilo São Vicente de Paulo. As pessoas morriam discretamente, como diria Apparicio Silva Rillo, e eram veladas em casa, com farta distribuição de rosquinhas de cachaça e café no ponto, e um bêbado murrinha – pelo menos um – na volta do corpo, tecendo loas ao finado. Alguns velórios aconteciam na Câmara de Vereadores, se fosse o caso.
Outros ex-viventes, na condição nem sempre cômoda de defunto, iam descansar a ossamenta entre os círios em um pequeno necrotério conjugado ao Hospital Santo Antônio. Era uma peça de alvenaria pequena, formato de igrejinha da campanha, com uma mesa de concreto ao centro, e bancos dos dois lados. Quem vinha da Avenida Quinze de Novembro, em direção à Vila Tatsch, hoje bairro, ficava à direita, logo após a curva.
Pois tramitava pelo Foro de São Sepé – o juiz da época era o falecido desembargador e patrício Elias Elmyr Manssour – um caso enrolado de homicídio praticado à emboscada, quando o magistrado entendeu por bem de ouvir um piá de uns dez anos, esperto que só ele, e que poderia prestar algumas informações de interesse para o deslinde da causa.
Antes de iniciar a inquirição, o juiz advertiu a testemunha, com certa insistência, e olhar de brabo, de que ela teria que falar a verdade, somente a verdade, que não poderia mentir, sob pena de responder a processo e, o que seria pior, acabar passando uns dias na cadeia. Claro que o magistrado não iria cometer a tropelia de prender o miúdo na chamada “mão grande”, contrariando os mais comezinhos princípios constitucionais. O que ele queria mesmo era induzir a criança a não esconder o que sabia sobre o fato, até porque a autoria do assassinato permanecia indefinida. O denunciado sustentava um álibi que permanecia um tronco de canela-de-veado diante da prova até então coletada.
O Dr. Manssour – acho que o Nabil deve guardar até hoje uma autorização assinada por ele, permitindo ao “turquinho” engraxar sapatos – ficou impressionado com a inocência e vivacidade daquele guri, e, mesmo findo o depoimento, prolongou um pouco a conversa com o menino, pretendendo arrancar-lhe algumas indicações a respeito de sua vida.
- Onde é que tu moras? – perguntou-lhe o juiz.
- Moro pros lados do presídio.
- Tu já trabalhas?
- Engraxo sapatos na Rodoviária, pois o seu Dali Rosa, e um irmão dele, o seu Paulo, são muito meus amigos e me deixam ficar lá.
- E a que horas voltas para casa?
- Quase sempre volto de noite, e ainda tenho que passar pelo necrotério, pois fica no cruzo.
- E não tens medo de passar pelo necrotério, de noite?
- No início até que tinha. Agora perdi o medo. Estou acostumado. Nem dou mais bola!
A conversa durou mais um tempo, até que o testigo mirim foi liberado e se sentou para depor a próxima testemunha. Quando o juiz já estava absorvido com a nova oitiva, o guri voltou, entrou sem bater na sala das audiências e disse, meio choramingando, que queria falar com o juiz. - O que é que aconteceu? – perguntou-lhe este -, ao que o pirralho respondeu:
- Doutor, eu voltei pra dizer que estava mentindo pra o senhor: eu fico louco de medo quando passo pelo necrotério…
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