Baldas de Majestade

Colunistas Geral

Se eu fosse rei um dia, e rei pode tudo, mais um pouco e outro tanto, conforme consta nas Escrituras Sagradas (se não está lá, deveria estar, pela importância do assunto), buscaria no mundo vizinho o Faim, com a suavidade do seu clarinete e o descuido de filósofo. Exigiria o retorno, pra ontem, do Júlio Vargas, do Almerindo Borba, do Peixoto, do Sérvulo Brum, do Clésio Calil, do pracinha Basileu – além de outros que viriam na próxima “leva” – e o motivo, caso alguém ousasse indagar ao rei, era só um: bordalesas de saudade! E eles pegariam de volta a carretera eterna só quando me desse na telha, e ficariam no entorno deste orgulhoso imperador para ensinar aos vassalos como é que se modela a argamassa da dignidade, mesmo após a dor das perdas se abancar sem sono na sala das visitas.

Os meus escolhidos mostrariam ao povo postado em reverência na Praça da Mercês como pessoas sem qualquer titulação nobiliárquica conseguem ter tanta importância para os outros do seu reino só tendo para dar em troca uma poesia, a roupa do corpo, um solo de sax, um canto boêmio bem lá na sumidade da noite. Homens que dispensavam convite para serem recebidos com festa na casa dos amigos, e quando vinha de lá o encontro dava tudo na mesma coisa.

Se eu fosse rei um dia, cada feudatário teria o compromisso sacramental de saber de cor algum poema, do tipo (“Puxo do bolso, em vez do manifesto/A minha identidade numerada/O pó na boca abafa-me o protesto/E se não fosse o pó, seria a espada. Apalpo-me a saber se ainda me resto/Depois de tanto afã na caminhada/Conservo ainda o peito, o rosto, o gesto/Um pão dormido e uma canção truncada”)

Em caso de necessidade, baixaria um decreto imperial e mandava buscar o meu pai no pôr-do-sol, para ensinar a fazer versos assim tão sensitivos.

Se eu fosse rei um dia, os filhos cresceriam até quando pudessem manter fogos de artifício nos olhos e o riso envolto em sedas de ternura. Somente assim não veriam o ressentimento e a raiva dissimulada que se escondem sorrateiros no peito de um montão de adultos.

Lá onde eu reinar, vizinho ao arco-íris, cada súdito escolherá livremente a sua fé, desde que Deus, é lógico, possa interferir na escolha. É que anda muito perigoso deixar alguns homens com poder de vontade. Eles cometem uma bobagem atrás da outra quando o Pai está longe.

Nos meus domínios de monarca, atentaria contra a moral e os bons costumes não ser feliz pelo menos um dia na semana. Em seminários e workshops haverá um espaço destinado à discussão sobre novas formas de amar. O preço da entrada será uma pequena porção de estima não-perecível.

Enfim, se eu fosse rei um dia, todos os meus submissos, depois de assistirem a elefanta Fátima, do Circo Irmãos Robatini, ser lavada pelo Ci no Posto do Marchezan, poderiam sentar descalços na praça para ouvir o Perereca anunciar no seu megafone imaginário que cedo também se faz a hora de juntar as malas e partir. Por isso, a vida, de tão franzina, tem que ser mimada, carregada no colo como uma criança com frio, pois o barquinho de papel que a leva pelos nossos rios perdeu a bússola que mostre o caminho de voltar.

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