O Padre Antônio Vieira, o grande orador sacro luso-brasileiro, a quem Fernando Pessoa chamou de “imperador da língua portuguesa”, disse, em um dos seus tantos e belos sermões, que “se repararmos com atenção quem vive e quem morre, é necessária muita fé para crer que há providência”. Mas, por que eu me lembrei de Vieira numa hora dessas? É que se um religioso de marca maior duvida da própria sabedoria de Deus, o que resta para nós, almas andrajas a mirar, em todo santificado dia que raia, o ufano triunfo da arrogância material sobre a bondade despojada, com finais infundados daqueles que tanto queremos bem, partindo a gente em dois quando se vão deste círculo que não se cansa de girar sobre o mesmo eixo.
Pois está sendo reformada e revitalizada a Biblioteca Pública Municipal Clara Gazen, por obra e graça do Vice-Prefeito Fernando Vasconcelos e de sua competente turma de colaboradores. Os mais novos talvez não saibam bem ao certo quem foi Clara Gazen, que nos deixou cedo demais.
Não direi, pela aguda incerteza das circunstâncias, que ela virou uma das tantas estrelas que andam deitando brilho no etéreo. Também não farei referência ao tamanho da amizade espiritual que ainda nos irmana, pois é algo indiferente a um sem número de pessoas, cujas inquietações naturais não guardam as mais breves feições de sensibilidade.
Direi, se for preciso apenas para que eu ouça, pois é o que me basta neste inconsciente cruzamento de saudade e revolta, que a Kainha pertencia à classe dos especiais, dos desiguais, e olha que há anos ando convivendo com gente de todo tipo e procedência por aí, batendo em endereços errados e chamando por quem já deixou de me atender sem qualquer cerimônia.
Tinha a minha idade, se quereis saber, e nas nossas conversas anoitecidas me dava um banho de cultura e conhecimento da vida, suas funduras, encostas e meandros. Era uma espécie rara de borboleta agônica, numa luta injusta contra a procela de um mundo muito distante do seu.
O tempo, com garras dantescas, apodera-se e leva embora tudo de meu: a lua de junho, os arrebóis, os amigos… E o incompreensível me deixa pateticamente com esta cara de tolo. Resta o ópio do vinho. Dirá Bilac: ouvir estrelas. Ora, direi ser Clara a luz amarelo-topázio que me irradia, toda a vez que meus olhos passeiam pela constelação.
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