De uns dias para cá tenho pensado bem mais do que deveria sobre a finitude humana. É algo que sempre me incomodou, e muito. Não que eu tenha medo de morrer. Não é isso. O meu maior temor é o de sair de cena sem ter feito quase nada para melhorar este “vale de lágrimas” de que fala uma parte da oração Salve Rainha.
Pois a minha irmã Isolda, a Tota – a mais nova – uma noite dessas me mandou uma mensagem. Aliás, não foi mensagem, mas um áudio, longo e emotivo. Uma verdadeira ode aos sentimentos mais sinceros. Me falou que ontem, ao passar por uma floricultura em São Sepé, comprou uma muda de bergamota Poncã para plantar lá na nossa casa, na Emídio Jaime.
O primeiro dilema que surgiu quando chegou de volta da rua com aquela pequena frutífera nos braços foi: plantar onde? Diante do impasse, sucedeu-se uma breve reunião entre ela, a outra irmã Isaura e a mãe, a dona Ila, do tipo dessas que se faz lá na ONU quando a coisa encrespa de vez, com bem mais circunstância do que pompa. A Isaura ponderou que na casa dela não teria lugar para o plantio, pois já tinha um pé de bananeira e um de limão siciliano a ocupar a área destinada aos vegetais, sem contar que a terra era muito fraca e custaria a nascer a tal bergamoteira. Caiu fora com delicadeza e explicação científica…
A mãe, por sua vez, obtemperou que já havia negado para o Fogiatto, rico vizinho, sempre solícito, a semeadura de uma goiabeira na divisa dos pátios, pelo que não teria coragem de pedir a ele a pá emprestada para plantar o cítrico. Vai daqui, puxa dali e surgiu a ideia de arrumar a pá com uma vizinha da Isaura, a querida Dorinha. Veio a tal pá – que do fio já não tinha mais nenhuma notícia… – e, finalmente, foi introduzida a mudinha ácida na terra úmida, num canto do muro divisório, depois de um esforço hercúleo e uma assistência curiosa e ávida pelo sucesso da empreitada.
À noite, a Tota começou a se lembrar do arvoredo que havia lá fora, no Lajeado Grande, plantado todo ele por nosso pai, sem qualquer simetria. Era pereira ao lado de bergamoteira. Pessegueiros de todo naipe lindeiros com laranjeiras variadas e por aí prosseguia a edificação do horto, sem a mínima obediência ao recomendado alinhamento às linhas de plantio.
É muito provável que a bagunça daquele bosque tenha sido de propósito. O Afif quis mostrar para nós, os seus filhos, que a vida é despida de uma harmonia resultante dos regramentos. As coisas não têm uma sequência lógica, de ser laranja com laranja, bergamota com bergamota, pera com pera. A gente tinha que saber, segundo ele, que tudo se confunde, por vezes derrete num fechar distraído dos olhos e depois volta a se moldar. Aquele pomar tão desconexo, tão sem planejamento, era uma lição de que tudo aquilo que a gente tem apego não precisa ter funcionalidade. Basta a si próprio pela afeição que encerra.
A Isolda tem uma lucidez perturbadora. No meio da madrugada começou a se indagar: quem irá colocar um balanço nos galhos daquela bergamoteira há pouco plantada? Quem irá se embalar? Será que a mãe, com a idade que tem, conseguirá comer nem que seja uma poncã, mesmo que ainda verde? Quem colocará uma cadeira debaixo daquela árvore, para se aproveitar do sombreado quando estiver frondosa? Quem?
Quando amanheceu o dia, a primeira coisa que fez foi arrancar aquele pé de bergamoteira, e ainda me deu um conselho no áudio: quando eu estiver com vontade de plantar uma frutífera, era para mudar de ideia e cultivar flores no local, muitas flores.
Mas foi muito acaso!
Ontem veio aqui fora, em São Martinho da Serra, o representante de uma madeireira para fazer o orçamento de um pergolado que a mulher pretende colocar perto da piscina. Coisa fina, com churrasqueira e mais uns balangandãs. Mede daqui, puxa a trena para o outro lado, chegou a hora da escolha da madeira. Oferecia o ipê, bem mais caro, mas interminável, e a outra opção seria o pinus tratado, que, segundo ele, duraria em torno de uns vinte anos.
Perguntei ao vendedor, na boa: mas o que que eu quero com um pergolado que vai durar muito além de mim e nem sombra irá me dar? Típica coisa inútil e cara.
Me respondeu – claro que querendo vender o seu pastel de carne com queijo -, que o investimento seria também para as gerações futuras.
Mas aí é que tá!
Depois que eu me for para o céu de Aldebarã quem irá sentar no meu lugar naquele pergolado? Será que vai ser uma pessoa boa para a minha mulher assim como eu acredito tenha sido? Será que vai tratar os meus filhos com uma certa condescendência, relevando os vários defeitos que eu passava a mão por cima? Claro que gostar deles nem vou exigir, mesmo porque ninguém irá gostar dos meus filhos na profundidade que eu os amei.
E outra: se o arrendatário plantador de soja comprar o pedaço de campo da Mara, é bem provável que o pergolado vire enfeite de tapera. Sabe como é: quem compra terra precisa desafetar os obstáculos para a fome das plantadeiras, e se a sede da fazenda não der lucro, que ela tenha a santa paciência e se recolha à sua insignificância de coisa sem serventia para o avanço do agronegócio.
Mas, pensando bem, o meu pergolado e a tua bergamoteira, adorada irmã, demonstram que é preciso dar sentido à existência. No final das contas esta força cósmica, a qual, por vezes, arrisco a chamar de Deus, é a essência desse agridoce viver. Não confiar mais nas obras do acaso, e, sim, nos seus propósitos. Todas as nossas conclusões, minhas, tuas, são uma espécie de luzeiro a clarear a nossa passagem por aqui. É aquilo que nos emancipa do ordinário para o comovente. Só quem ainda está descobrindo a vida pode adotar esses desfechos, ainda que vulgares. Do contrário, a tua bergamoteira seria apenas mais um pé a fazer sujeira no pátio da mãe, sempre tão encanada com limpeza. Flores, frutos, troncos, árvores e esta gama natural vindo da terra possuem um denominar comum: raízes, e acho que isso diz muita coisa para nós dois.
Tota, vou te fazer um pedido de irmão: não liga muito para as cadeiras vazias, pois elas serão cada vez mais presentes nas nossas vidas daqui por diante. E planta novamente a bergamoteira. Seja ela bem-vinda ao mundo da saudade, do sorriso largo e terno do nosso pai a nos contar histórias de duendes que brincavam naquele quintal confuso lá no Lajeado Grande.
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