DONA DELCY

Colunistas Geral

O meu pai tinha um eito de primas pelo lado dos Evangelho, mas havia uma que ele gostava com predileção: a dona Delcy. Presumo que seja porque ela passava a maior parte do tempo, quando bem jovem, na casa do meu tio Nassif. Aliás, quando a Alice e o Alcindo começaram a namorar – eram pouco mais que duas crianças – foi a dona Delcy que “segurava a vela”, a pedido do pai da guria, sempre muito zeloso pela guarda e manutenção dos bons modos da filha. “Segurar a vela”, para quem não sabe, era um costume peculiar que começou a ser praticado na França dos tempos medievais, e que se referia a alguém solteiro que acompanhava um casal de namorados e ficava sem ter muito o que fazer nessa situação, a não ser atrapalhar o clima romântico que naquela época ainda pairava pelos céus estrelados da nossa urbe.
Nem preciso dizer que hoje em dia “segurar a vela” faz parte do antiquário sentimental das pessoas, algo pertencente ao museu dos relacionamentos afetivos. Aliás, acho que nem namoro existe mais por aí. As pessoas se conhecem ontem e amanhã já passam a viver como se fossem marido e mulher. Longe de mim julgar se isso está certo ou errado. É apenas uma singela constatação de um curioso espectador dos nossos costumes frente ao perpassar do calendário gregoriano.
Delcy Evangelho Kurtz, filha de Alcebíades Souto Evangelho e Otília Silveira Evangelho, nasceu no mesmo mês e ano da minha mãe, mas a dona Ila veio ao mundo alguns dias antes naquele novembro antigo. Esposa do seu Alfeu Kurtz, o casal teve os filhos Alci, Elaine e Alcio. Eu estava jogando bola com o Alci lá no Iguaçu naquele dia em que tudo aconteceu, e estranhamos quando ele foi embora apressado. Só alguém com muita crença em Deus, no espiritismo kardecista para enfrentar a morte de um filho. Sei pela minha mãe o quanto esse sofrimento perdura, sem jeito de estancar. Tem que ter tutano para aguentar essa inversão quando a vida acaba.
A dona Delcy estudou no Colégio Madre Júlia, onde, inclusive, participou de um grupo de teatro – bem coisa dos Evangelho, sempre ligados à arte, à música, às questões anímicas. Iniciou sua vida profissional como atendente na Farmácia Rangel, do seu Elpídio. Por sinal, carreguei as alianças no casamento de uma filha dele, e sei disso porque a minha mãe guarda até hoje a centenária fotografia. Nessa época o seu Alfeu trabalhava na Arrozeira Sepeense. Passado um tempo, resolveram abrir o próprio negócio, um mercado na rua Antão Faria esquina com a Clemenciano Barnasque. Mais tarde inauguraram outro estabelecimento comercial no mesmo ramo, em frente à Praça das Mercês, onde hoje é o Bradesco. Tiveram mercado por 40 anos, o que não é fácil em se tratando duma cidade pequena e sem muitos recursos que nem São Sepé.
Faz um tempão que não vejo a dona Delcy, mas sei, principalmente pela mãe e pela Simone, mulher do Alcio, que está bem e lúcida – faz contas de “cabeça” até hoje. Fica mais por casa, principalmente nestes tempos de pandemia. Ah, e ainda torce com fervor pelo Grêmio, o que não é de todo recomendável em se tratando de alguém que, pela idade, deve evitar ao máximo emoções muito fortes…
Fiz questão de escrever este texto ditado pelo coração para homenagear não apenas a dona Delcy, essa prima querida que o meu pai gostava tanto, mas todas as mães que perderam filhos e seguem resolutas e determinadas por aí, vivendo o que resta por viver de forma estoica, mesmo enfrentando uma dor que só quem a sente pode mensurar a sua mais exata dimensão.

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