As chuteiras do centroavante

Colunistas Geral

Nas edições dominicais de um afamado jornal de Porto Alegre apareciam entrevistas realizadas com pessoas conhecidas do mundo musical e letrado, onde a primeira pergunta era a mesma para todas: – Qual a sua lembrança de infância mais remota? As celebridades respondiam de tudo um pouco, desde o cheiro que vem da chuva miúda até o gosto de bergamota descascada perto do pé, passando pelo pranto das pessoas se despedindo na gare da estação de trem.
Como não sou e nem serei famoso o suficiente para integrar a relação dos interrogados naquele espaço fidalgo, passo a informar aos curiosos e circunstantes que a lembrança mais antiga que eu tenho da infância são as chuteiras do meu pai. Era um domingo de manhã e tinha combate dos veteranos no campo do Bento, quando o Afif me mandou procurar o pisante goleador no quartinho dos fundos, misturado a enxadas e ancinhos que o Salmeron, irmão da Inocência, usava na capina do pátio.
As “fobas” eram desprovidas de qualquer ornamento estético. A cor, entre o preto e o marrom, puxava mais para burro ao alçar a cola. O solado, duro como um paralelepípedo, tinha seis travas e o mesmo número de pregos, todos eles carrancudos, a rondar a canela alheia em tarde de jogo, e um cano tipo botinha, na volta do tornozelo, grisalho de bolor. Eu até posso estar enganado, mas acho que o pessoal da CEEE acabou copiando o modelito da botina exótica para subir nos postes de alta tensão.
Mas o que mais me chamou a atenção, anos depois, feita a necessária contabilidade dos débitos e haveres, foi o fato de que o meu pai tinha pouco mais de trinta anos e já jogava nos “deixados”. Havia tempo já era um ex-atleta, com onze anos a menos que tem hoje o Nenê, maestro do time do Juventude de Caxias. A conclusão que tirei dessa anomalia temporal é que o pessoal antigo virava idoso antes da hora ou, por outra, os mais jovens envelheciam com uma pressa demasiada. Em albergue à minha tese da deterioração precoce dos semoventes humanos, há uma passagem no primeiro volume do “Solo de Clarineta”, livro de memórias do grande escritor Erico Veríssimo, em que o pai do autor, o farmacêutico Sebastião Veríssimo, tinha apenas trinta e cinco anos e era conhecido, em toda Cruz Alta, como o “Velho Bastião”, o mais generoso presenteador de que se teve notícia naquelas paragens serranas.
Os companheiros de time do meu pai eram o goleiro Caneca, os zagueiros Holmes e Luiz Fraga. O centromédio era o Felipe, com uma saúde de ferro, que ele creditava aos banhos frios que tomava ao despertar, inverno e verão. Na lateral esquerda o Derli, firme e que chegava junto. Também tinha o Portinho e na ponta direita brilhava o Davi. No ataque os irmãos Bráulio e Caio, e na ponta esquerda o Chico Azambuja, o melhor de todos, segundo o Afif. Dizia ele que o Chico tinha “ além da classe, uma calma enervante, e que colocava a bola onde queria”
Se eu disser que tudo passa sem o destilo de uma réstia de fel, vou estar mentindo, na igualitária proporção em que me sinto meio vivo e imaginário neste agosto titubeante em São Sepé. Há um hiato indecifrável entre as canoas opostas singrando o mesmo rio da minha infância. Uma leva na popa a mocidade finda num corpo exaurido de pai. A outra traz na proa a esperança menina do filho homem.

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