E o quarto?

Colunistas Geral

Lembrei-me, num fim de tarde grisalho que andou fazendo dia desses, do Bruno José Ferreira. Não sei por que cargas d’água, mas a figura do Ferreirinha apareceu fúlgida à minha frente, rosto vermelho tangido pelo álcool, pernas cambotas conduzindo um corpo invariavelmente trôpego, e óculos de grau desproporcionais à moldura da face, cobrindo boa parte da testa avantajada.

Com a lembrança do meu amigo também chegou, mesmo passo, a recordação de sua morada, que me acolheu tal qual espécie exótica de filho temporão. A porta da frente, pálida de tanto guardar segredos de alcova, não tinha vidros e nem chave, pois servia somente para estabelecer a linha divisória entre a nossa fantasia e o mundo das coisas concretas. Adornava a nudez da sala ampla e fétida uma garrafa de cachaça, com ares de castiçal. Da pequena mansarda, espécie de meia-água, à esquerda de quem chegava, vinha um cheiro de borracharia que inundava a casa por inteiro. Nela morava o Nanico (Júlio César de Assis Pereira), um mulato metido a malandro, neto de criação do Dr. Paschoal, e que trabalhava como frentista no posto de gasolina do seu Noé Silveira. Foi com ele, o filho do velho Carona, que aprendi, em aulas práticas diárias, que o racismo só existe entre pessoas de cores diversas quando a amizade e o respeito significam apenas esfarrapadas alegorias de um esquecido carnaval…
A cozinha, de piso desdentado, era enorme, como enorme era a mesa de timbaúva e a teimosia das goteiras. Ali, num domingo que recém abrira os olhos, o Ferreirinha, dando os últimos retoques na maquiagem de um porre outonal de estimação, ensinou-me uma frase tão estranha quanto sonora: “si vis pacem para bellum”.
No quarto dele havia uma fotografia ampliada de Fernando Ferrari, pedindo a todos os rio-grandenses que plantassem trigo, pois cada pé colhido do nobre cereal representava mais um pão na mesa do pobre. O aposento ficava em frente à antiga seção de cartas e encomendas dos Correios e Telégrafos.
Por falar em quarto, tem uma “tirada” do Bruno que já pertence, por demasiado espirituosa, ao melhor do anedotário local. Solteirão irretratável, amiudou as visitas ao cabaré da Comadre Iris, até porque lá batia ponto uma morena cobiçada, a Marinelva, com quem ele já havia se envolvido tempos atrás em demandas de lençol.
Numa noite, vendo a libertina desacompanhada e mascando o freio no salão do bordel, traçou o Ferreirinha um plano de governo que tinha tudo para dar certo. O projeto era não beber muito – pois andava atorado dos trocos – e ir logo pro leito pra se libertar do “atraso”. Acertado o cachê, combinou-se que a parte dela seria alcançada no final do mês, quando o Bruno recebesse os proventos da aposentadoria. Mas só tinha um porém: o dinheiro do quarto, destinado à proprietária do estabelecimento comercial, deveria ser entregue logo depois do programa.
Negócio fechado, lá se foi a fome e a vontade de comer juntar os corpos em brasa na tepidez da suíte do lupanar.
O problema é que a “peladura” do Bruno era tão grande que não tinha sequer a verba destinada ao pagamento do cômodo. Por isso, após o conúbio sexual, esperou a Marinelva pegar no sono e abriu a porta bem devagarinho, na intenção de ir embora e consumar o “beiço”. Só que o sono da morena tinha aprendido a ser leve, circunstância imposta pelo rangido da velha fechadura.
E gritou de toda goela a rapariga:

  • Bruno, e o quarto?
    A resposta veio seca, enquanto o meu saudoso cupincha tratava de sair de manso da casa de tolerância em busca do breu das ruas:
  • Pinta de verde!!!

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