OUTRA VEZ O NATAL

Colunistas Geral

Falta bem pouco para o Natal meter a barba rebelde e esbranquiçada no calendário gregoriano. Haverá, em uma infinidade de casas grã-finas, homens veneradores do consumismo e mulheres emperiquitadas discutindo as oscilações do dólar, ao som do jorro brindante de espumantes importadas. No lado de fora, observarão constritos a procissão de párias, envoltos até o pescoço em pedaços de pano, e uma fome escorrendo sem alívio pelo vão principal das bocas desdentadas.
Diante de cena tão desagradável aos olhos da grei abonada, alguém irá à janela para fechá-la com disfarçada rapidez. Dirão não ser o caso problema deles, mas do governo e de suas autoridades incompetentes, que não mexem uma palha para tirá-los das ruas. O toque do dedo bodum na campainha fará soar os primeiros acordes do hino salvador da remissão. Aos errantes serão alcançadas – em pratos descartáveis, como reza a cartilha da vigilância sanitária – partes da comida que iria pro canil do Rex, e tudo ficará resolvido na órbita da consciência solidária universal. Depois do pequeno transtorno, voltarão apressados ao salão principal para retomada do palpitante assunto sobre o que ainda pode ser comprado de vantajoso em Rivera.

E dormirão o sono dos justos, empanturrados de canapés e líquidos nobres.
Torna-se muito complicado – pelo menos pra mim – interpretar o conceito de justiça quando a desigualdade é demasiada hostil, a ponto de permitir que crianças adormeçam na escuridão dos bueiros e viadutos. Quando lhes bate o sono, acabam virando passarela de carne e osso para ratos esquálidos. É o limite do suportável. Depois disso, nem a morte pode fazer tanto mal a uma pessoa.
A ironia das disparidades está escancarada em cada quadra da cidade, à semelhança da sorridente porta-estandarte que abre o desfile de pálidas alegorias. A passividade circunstancial faz a gente permanecer encolhida na arquibancada, enquanto singra pela avenida a nau dos rotos itinerantes. Afinal, que insensatos somos nós que não sentimos a dor a descoberto dos meninos e meninas que entoam a súplica diária por uma sobra de alimento? Ou se é capaz do mínimo gesto de piedade ou padecemos todos sob o fundo musical de uma marcha fúnebre matutina.
Pois, neste Natal que se aproxima, vou torcer no íntimo para Papai Noel circular bem menos pelos shoppings e dar uma passada, sem pressa, por lugares onde o inventário será sempre negativo. Talvez ele, vendedor de neve por estes trópicos, ou o ilustre aniversariante do dia vinte e cinco de dezembro, consigam diminuir, no ano novo, a largura do fosso que separa o guri ranhoso dos tantos irmãos seus, que vivem diferentemente no lado de cá. Não precisa dar de presente uma boneca que fala ou um trenzinho que apita aos que moram do lado de lá. Eles se contentam com pouco. Qualquer coisa serve, até mesmo a ajuda de um olhar…

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