QUANDO CHOVE LÁ FORA

Colunistas Geral

Quando chove lá fora, reinventa-se a hora do anjo, e o tempo interrompe o seu itinerário imprevisível desde que o mundo é mundo. O cheiro de terra trazido pela chuva densa cobre toda a vastidão da pampa, e até o verde das casuarinas se alvorota com os pingos que se despencam com pressa de um céu que de tão plúmbeo já nem parece mais céu. O gadario perambula atarantado pelos campos florescidos, e o recomeço da vida aponta sua face imberbe na varanda da porteira.

Um homem a cavalo, olhos negros e olheiras fatigadas que dormem sob o luto das sobrancelhas, vestindo poncho carnal vermelho e um chapéu desabado, faz-se maestro encharcado dos insepultos silêncios que se debruçam mais ao longe, regendo o rumor vaporento que se desgruda das várzeas e coxilhões.

Salvador Guterrez cavalga cismado em direção à figueira copada, centenária estátua vegetal cravada bem no meio do descampado. Busca entender por que a Santinha foi embora do rancho posteiro que ergueu só pra ela, no fundão da Fazenda Carovi. Não teve prenúncios, nem o mais frágil indicativo de adeus. Simplesmente, encontrou tudo vazio na volta de uma doma reiúna lá pros lados do Espinilho. Tem sofrimento que se aceita, outros a gente releva, mas a dor do abandono pela mulher amada, essa sim, meu amigo velho, é ferida que não seca, está sempre a ressudar.

Quando chove lá fora, o semeio da lavoura é substituído pela prosa afamiliada rente às bordas do fogão de lenha comprida. A peonada inventa serviço de corda e lentamente engraxa os arreios no galpão defumado lindeiro às casas. Da janela da cozinha, um latifúndio de úmidas paisagens adorna mato e invernada, e as paixões campesinas recobram todos os sentidos, respiram aromas de madressilva.

Salvador Guterrez, quanto mais se aproxima da figueira, mais ferve a recordação de Santinha, dos seus lábios adocicados e sumarentos. Os seios cabiam inteiros na concha carepenta das mãos. Ele bem que não merecia tamanha desfeita. Se ainda pudesse procurar os seus erros, mas de que adianta achá-los agora, se aquela que lhe prometeu um filho macho não vai cumprir o aceno?

E foi pensando em Santinha, nas festas da capela, nos bailes de par constante no Salão do Orozimbo, na primeira vez que ouviu da boca de uma mulher a frase “eu te amo”, que Salvador Guterrez resolveu colocar um ponto final naquelas lembranças escalavradas de saudade. Mirou o galho carnudo que pendia da velha figueira, ao tempo em que palmeava a presilha do laço, enquanto os seus olhos choviam pra dentro…

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