O Dr. Luiz Fernando Calil de Freitas é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado, com mestrado pela PUC e doutorado em Direito pela Universidade de Roma. É também professor universitário e autor dos livros Direitos Fundamentais – Limites e Restrições e Supremacia da Constituição e controle de constitucionalidade no Brasil. No último concurso de admissão ao cargo de juiz de Direito fez parte da banca examinadora na prova oral. Para os seus amigos de São Sepé, no entanto, ele é apenas o Pongo, um colorado gozador que está nem aí para títulos e honrarias. Pois o medonho me escreveu – ainda no século passado – uma carta que é um lírico inventário de nossas vidas, que não têm e nunca tiveram nada de extraordinário, exceto uma amizade passada de pai para filho, e que certamente seguirá entre os nossos descendentes, caso um dia, quem sabe, a geografia permita. Os pais do Pongo eram meus padrinhos, e os meus dele.
Revirando uma papelada na casa da mãe em busca de algo que me interessava, encontrei esta preciosidade. Foi a coisa mais linda, mais tocante que alguém já escreveu sobre nós nos tempos da mocidade em que o futebol, o violão, as namoradas caçapavanas, os livros e os poetas era tudo o que realmente importava. Faço questão de dividir este momento afetivo e único com os meus leitores:
“Querido amigo, os tempos mudaram. Tu bem sabes e eu também. Mas não tenhamos pena de nós mesmos, como quem fica recontando patas de aranhas metafísicas ao ver que o tempo passou e continuamos aqui. As aranhas têm oito patas e disso já sabemos. E, como diz a música, o passado é uma roupa que não nos serve mais. Recebi teu livro e a tocante dedicatória, simples como são as coisas geniais. E bela, sublime de tão bela aquela dedicatória que diz que sou um (teu) quase irmão. Quero muito as irmãs que tenho, mas me sinto só sem um irmão; talvez tenha passado a vida procurando-o nos amigos como tu. Quando leio teu livro (vou lendo aos poucos, para poupar) entendo o sentido daquelas tardes de futebol e noites de violão e algo de beber. Nele é fácil encontrar o amigo generoso, de olhar cúmplice e gestos largos. Vou te mandar meu livro mas não espere nele encontrar coisas belas em prosa poética como no teu Cofre, que a vida me levou por outros lados, a escrever numa prosa rude e árida de rábula insistente que sou. No livro vou tentar (minha derradeira tentativa, prometo) uma dedicatória poética, do tipo Drummond em A máquina do mundo, que poema mais lindo não há, e talvez aí consiga, na dedicatória, te dizer que a saudade dos amigos… dá volta ao mundo e torna a se engolfar na estranha ordem geométrica de tudo… Mudaram os tempos, amigo, e o que sobrou pra mim foi escrever um livro sobre direitos fundamentais. Queria mesmo escrever sonetos como o padrinho, alexandrinos como Camões e versos livres como Ferreira Gullar – que pretensão. Não podia dar certo. Sobrou o Direito e escrever sobre ele é escapar da frustração de não saber escrever rimado. Mas eu passei boa parte do tempo andando por aí, visitando lugares e conhecendo pessoas, talvez se tivesse ficado mais quieto, mais parado, teria aprendido a traduzir em palavras escritas bons pensamentos. Mas, ainda que tivesse conseguido isso, como jogar futebol com a habilidade que tens? Onde o virtuosismo, o tirocínio da jogada genial no espaço minúsculo com a perna esquerda? Onde o corpanzil avantajado de um Zidane sepeense, um falso lento que tanto cria quanto destrói, chuta e cabeceia como poucos? Não, eu jamais passei dum medíocre na bola como no lápis, amigo, mas sempre me compraz trocar orelha contigo. Assim como em tempos passados ousei tentar fazer ao violão, insistindo em urbanizar teu repertório com Alceus Valenças e Nelsons Coelhos de Castros, em momentos em que a saudade de alguma caçapavana te surrupiava qualquer resquício de vontade de ser magro da Du Lanche… É, amigo, os tempos mudaram, mas foram tantas e tão boas as serenatas, os duetos ensaiados (e que faziam lá seu sucesso, convenhamos, que nem tudo são trevas…) para Vira virou (vou voltar na primavera, que era tudo o que eu queria….) e tantas outras de Kleiton e Kledir. Lembra? Quem não lembra? Hoje o sangue árabe continua me levando por outras paragens e um convite para um doutorado em Sevilla me sequestra o sono e oferece em troca o sonho andaluz, que talvez tenha sido e possa vir a ser, enfim, o sonho sonhado às margens do Guadalquivir. Entre um sonho e outro há o abismo da saudade dos amigos que dá vertigem. Mas, não te apoquentes amigo, já não choro. Não porque homem não chore, que isso é rematada bobagem, mas por temor à advertência feita por Aixa, a virtuosa, a seu filho Boabdil, último sultão árabe a reinar no Al-Andaluz: Bem fazes de chorar o que perdeste como uma mulher, já que não soubeste defendê-lo como um homem. Mas como defender a juventude contra o passar do tempo? Como eternizar pessoas, situações e sentimentos?
Só morrendo e aí já será, então, melhor que o tempo passe e as coisas mudem”.
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