Zóinho

Colunistas Geral

O Zóinho já faz um tempo largo que pertence ao mundo dos epitáfios, e é preciso admitir que a sua vida não merecia um registro por escrito. Mulato pobre, vivedor de changa, briguento que só ele quando tinha lá atrás a força no braço, quem é que vai perder tempo lendo o que fez e o que deixou de fazer pessoas desse naipe? Com a crise levando de roldão o que encontra pela frente – principalmente o nosso sono – é pura falta do que fazer preocupar-se com a vida dura que o Zóinho possa ter passado antes de se tornar finado. Eu, um funcionário público cheio das regalias, e que faço parte de outro tipo de classe social, daquela que bem pouco sente o calor do aço, até nem sei ao certo por qual razão estou escrevendo essas coisas aqui no jornal. Deve ser porque me lembrei, falando com o Nika lá no Bigu, de que jogamos futebol juntos no campinho do seu Fábio, onde agora é o Banrisul; ou, então, porque, uma vez, ele botou a correr dois engraxates que queriam porque queriam me bater o “brim”, por causa de uma partida de bolita que eles não souberam perder para este craque do gude. Mas isso é pouco, convenhamos, para que eu fique procurando palavras interessantes ou rebuscadas para falar de alguém sem a mínima importância, e que, para culminar, ainda morreu em isolamento, quarando tuberculoso e cirrótico no hospital da cidade.
O Zóinho era ativista daquela massa singela que compõe a sociedade dos arrabaldes. Figuras primárias e sem maiores pretensões materiais, cujo contato, ainda que esporádico, ajudou-me a formatar alguma virtude que possa doar aos que me sucederão. Quase nada tirei dos livros que tivesse o alcance de oferecer aos filhos como lições de benevolência. O caminho perigoso das ruas mal iluminadas, aquela mínima malandragem, tão necessária à autodefesa da traiçoeira raça humana, a retirada sem alarde dos ambientes hostis, tudo isso aprendi com gente que nem o Zóinho, e até mesmo com os engraxates que quiseram me surrar. Não foi nas salas de aula da universidade, e muito menos nos plenários das academias, dos tribunais, que me foi ensinado como repartir as sobras ou me portar com decência diante das adversidades.
Talvez seja por isso que tenho uma inexplicável predileção pelos desassistidos, pelo rebanho miúdo que compõe a caravana dos vassalos. Acho que foi herança do meu pai, por aí a coisa…Caricatos seres de horizontes improváveis, sem nenhuma perspectiva de ocupação que lhes dê o sustento além da garrafa de cachaça bebida no diário e o fumo desfiado no papel Colomy.
Eu não sei se tu sabias, Zóinho, mas o pessoal das igrejas diz ainda hoje que nós éramos irmãos aqui na Terra por vontade de Cristo. Nossa mãe, quanta tolice os homens professam nos altares! Irmão que é irmão come todos os dias, e o teu prato não dependia da tua forja, mas da bondade solidária dos amigos. Irmão que é irmão frequenta os mesmos lugares, e nos que eu entrava a segurança corpulenta não te deixava chegar nem perto da porta. Será que podemos considerar como irmãos de verdade quem morava em casas tão diferentes, uma no centro e a outra na beira da sanga? Que irmãos são esses que a comunidade discrimina como quem separa o ateu dos que seguirão entoando cânticos submissos?
Que fique bem claro, Zóinho: tu não foste nada meu, muito menos irmão. O máximo que aconteceu entre nós foi este gesto improdutivo de gratidão que eu tenho agora, na tentativa inútil de me aproximar de ti…

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