BERENICE

Colunistas Geral

A Peteleca e o Bodoque tiveram quatro filhotes, a saber: Teixeirinha, Forquilha, Chinoca e Berenice. O casal era puro, da raça Terrier brasileiro, mais conhecido por Fox paulistinha. Ótima para companhia de crianças, pelo seu comportamento brincalhão, alegre, esperto, amigável e gentil. Eu disse “era” porque os dois já morreram, e também a Chinoca, atropelada na estrada de chão batido que passa em frente à casa dos antigos donos.
A ninhada nasceu em 20 de outubro de 2014, tendo como maternidade canina o sopé de uma bromélia gigante localizada na sede da fazenda da minha cunhada. O Teixeirinha já estava destinado ao nosso convívio e chegou no apartamento na rua Cel. Niederauer, em Santa Maria, passados uns seis meses desde o nascimento na base daquela frondosa árvore florida. Sempre foi muito engraçadinho, mas encrenqueiro com os estranhos uma coisa por demais, principalmente sendo homens. Com os de farda, então, ele ficava enlouquecido, e militares do Exército era o que mais tinha naquelas redondezas. Até hoje é rebelde, isso que já gastamos uma nota com adestrador e adoção de outros métodos de educação. Temos amigos que até desistiram de nos visitar na nossa chácara em São Martinho da Serra graças ao temperamento hostil da pestinha rosnenta e traiçoeira.
A Berenice chegou bem depois. Numa ida até a casa da irmã no Rincão dos Negrinhos, a minha esposa Mara viu a cusquinha seguir o carro quando voltava da visita. Na porteira ela parou estaqueada, à espera de colo. Com a devida permissão da cunhada, a Berenice passou a fazer parte da nossa família. Já morou até na Capital, mas o que ela gostava mesmo era correr lá fora atrás das lebrinhas que voltaram a povoar os nossos campos, a despeito da quantidade absurda de agrotóxicos despejada nas lavouras.
Tudo transcorria na paz ordeira do Senhor quando, lá pela metade deste mês de abril, num domingo outonal e de sol a pino, o meu filho Santhiago e a noiva Aline foram caminhar na trilha de terra que passa em frente à propriedade, e que liga o Rincão dos Negrinhos até a BR-158. Iam com eles no passeio os dois irmãos, mais o labrador Marley e o Pirulito, um combo de salsichinha e vira-lata objeto de uma amável doação. Na volta do bordejo, a Berenice – curiosa e metida que só ela – inventou de meter o focinho numa toca que havia na beira da estrada, no meio de um pedregal, e só se ouviu o grito agudo da cadelinha. Uma cobra, que nem deu para saber a espécie, meteu com gana todo o veneno armazenado no focinho da Berenice, e um filete de sangue já deu as caras no local da picada.
Tratamos logo de levar a Berenice para um prestativo veterinário que tem campo ali perto da nossa chácara, o Matheus Bernardes, que, prontamente, aplicou o soro antiofídico que eu tinha levado em três locais do corpo, para que o remédio fizesse efeito mais rápido, segundo ele. Passadas algumas horas, a Bere começou a formar papada e inchar o focinho a ponto de ficar deformada, mas sabíamos que era assim mesmo, pois o Teixeirinha e o Pirulito já haviam passado por isso, picados por uma peçonhenta dentro do potreiro na frente das casas.
A cachorrinha não queria comer, só dormia e cada vez mais inchada. Na terça, como o quadro clínico só regredia, tratamos de levá-la para um hospital veterinário em Santa Maria. Soro na veia, antibiótico, corticoide, suplemento alimentar, remédio para náusea e enjoo, hemograma a cada dois dias, e nada do bichinho apresentar alguma melhora, por mínima que fosse. Pelo contrário; só piorava, e já tinha perdido mais de um quilo, o que era considerável para quem pesava apenas sete. A internação foi na terça. Na sexta-feira, a veterinária, com o cenho carregado, nos chamou para um particular: teríamos que conseguir um cachorro com mais de 28 quilos para ser o doador de sangue para a Berenice, e que rezássemos para que fosse compatível, pois seria a última tentativa de salvá-la. Se a transfusão não surtisse efeito, a Bere seria sacrificada, para colocar fim ao sofrimento, dela e nosso.
Pois enquanto eu já pensava no que faria com o corpo da minha cachorrinha de estimação após a eutanásia – se enterrava lá fora, no meio do mato, com uma cruz de lenho tosco a indicar o lugar, ou cremava aqui na cidade, e as cinzas jogadas num lugar a ser definido mais tarde -, liga o meu caseiro, já sabedor da extensão do drama, informando que tinha um senhor que morava no Rincão dos Trindades, interior de São Martinha da Serra, e que fazia um composto à base de ervas e outras substâncias que era muito procurado em caso de picada de cobra, cuja fórmula foi passada de pai para filho e era um segredo de Estado. Se eu quisesse, ele poderia ver se o velho tinha o remédio campeiro “à mão de semear”.
Nem bem cheguei a responder à indagação e o Alcione já estava de volta, com uma garrafinha de Pepsi-Cola, das bem pequenas, contendo o milagroso líquido, segundo a opinião do empregado e de um monte de gente que morava no rincão. Serpentina é o nome do produto campeiro medicinal.
Voltamos ao hospital. Pedi à veterinária, cheio de dedos, que ela permitisse o emprego do preparado, sob minha inteira responsabilidade. Duas colheres de sopa do remédio caseiro, com aplicação via oral através de seringa. Permissão concedida, ela mesmo injetou o líquido, com um leve cheiro de criolina, na lateral da boca da cachorrinha. Isso foi na sexta-feira, à tardinha, no horário da visita. Mais duas aplicações diárias da solução líquida, sempre pela manhã, e o tratamento estava encerrado, segundo o que preceituava o seu Leonel.
Na segunda, a Bere deu alta…
Não me tenho como um asno por completo. Em sendo assim, evidente que não descreio da ciência e muito menos dos remédios produzidos pelos laboratórios mundo afora. No caso da Berenice, entretanto, tenho a mais absoluta certeza de que não foram eles que curaram a minha mimosa, mas, sim, o Seu Leonel e aquele remédio campeiro elaborado num panelão fervente sobre o fogão de lenha, cuja fórmula, recebida do pai, somente será repassada para o filho.
Quanto à Berenice, retornou neste domingo para fora, após um período na cidade, para ficar mais perto do recurso em caso de precisão. Recebida com lambidas pelo irmão, pelo Marley e pelo Pirulito, já tenta correr com a parceria pelo gramado em frente ao açude, ainda que magrinha, com os ossos das costelas aparecendo. Quando pego ela no colo, me fixa com aqueles olhinhos escuros da mais pura gratidão. Se compreendesse a linguagem dos humanos, diria a ela que fosse comigo até o Rincão dos Trindades, onde mora o velho Leonel, para que possa agradecer pessoalmente a quem, a bem da verdade, lhe devolveu a vida…

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