VELÓRIO COM DEFEITO

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Dos amigos que me sobraram – com a morte aqui deste veterano cronista interiorano acredito que haverá um leve aumento do quantitativo, pois tem sido sempre assim com os outros – o Emiliano é o único que gosta de tango. Só por isso já requer ser conduzido sob escolta do Pelotão de Choque ao Zoológico de Sapucaia, e exposto com cuidado na alameda dos bichos exóticos. E ele não é tão idoso assim que pudesse justificar, de plano, tal predileção. Fico pensando: quando ficar mais velho, vai gostar do quê?
Natural, face às pilastras paranormais e indecifráveis da genética humana, que ele procurasse abrigo para tal inclinação afetivo-musical nas casas de espetáculo destinadas a esse fim, em Porto Alegre. São poucas, e cada vez menos, mas de qualidade, o que significa: típica afinada, cantor de voz grossa, pôster do Gardel na entrada do recinto e ambiente com bastante fumaça e bem pouquinha luz. A melhor delas ficava no Bairro Moinhos de Ventos, um dos mais grã-finos da Capital. E foi para lá que o Emiliano começou a se dirigir ao longo de cada sexta-feira, depois das nove. Já na terceira visitação, o gerente do estabelecimento recebeu-o na porta com efusivo abraço paraguaio, dando-lhe solene ciência de que fora escolhido a dedo, pela Ordem Maior do Tango de Regalito, para receber diploma de honra ao mérito. Seria na próxima quarta-feira a cerimônia de entrega da distinção.
Só que tinha um porém, um pequenino detalhe: deveria trazer junto uma comitiva de, no mínimo, doze pessoas para o jantar de confraternização, tudo por conta do convidado, como era centenário costume da casa. Sentiu de pronto que tinha rebusque na parada. Não foi. Deu uma desculpa qualquer. Na semana seguinte, o mesmo gerente volta à carga:

  • – Ficou tudo certo para a próxima quarta-feira, sem falta. Os convites estão na mão.
    Emiliano confirmou a presença, mas já se sentindo como um gato angorá puxado pelo cabresto.
    Chegado o dia, jogavam Inter e Santos decidindo a classificação à próxima fase no Brasileirão. E o Emiliano foi ao jogo, colorado doente, quando mais não seja porque conseguiu reunir apenas dois amigos para acompanhá-lo na entrega da premiação. Antes de sair, pediu à mulher que ligasse cedo para a casa de tango avisando que não iria, pois teve que comparecer às pressas a um velório em São Sepé.
    Fim de partida, o Emiliano aproveitou o calor e foi tomar chope num barzinho da Goethe. Quando estava indo embora, quem vem lá, dobrando a esquina? O gerente da casa de tango, ele mesmo!
  • – Mas como! A tua mulher me ligou. Tu não tinhas ido a um velório na tua terra?
    E o Emiliano, que é gago, igual a um cara que eu conheço, o que significa também atacado das ideias na hora braba do apuro, ao ver se aproximar aquele homem com os braços abertos, a pedir uma explicação capaz de justificar tamanha desfeita, só teve tempo de balbuciar a desculpa mais fantástica e esfarrapada de que se tem notícia nas adentradas terreiras de caboclo e mais solenes casas espíritas:
  • – Fu…fui e já voltei. O velório não saiu…

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