De uma hora pra outra simplesmente deixei de usar relógio de pulso. Veio do nada essa minha decisão de abolir de vez o uso da maquininha com mostrador que adornava o meu antebraço esquerdo. Sim, sempre foram com ponteiros andarilhos os aparelhos indicadores das horas que eu usei por mais de meio século. Nunca fui muito dos digitais, pois me davam a nítida impressão de que a vida passava mais ligeira e sorrateira atrás daquelas vidraças escuras estilosas. Um Technos casca-grossa, com pulseira de couro falso de crocodilo, foi o que mais permaneceu na munheca deste amigo de vocês.
Agora não preciso mais de relógio. Os que eu tive todos esses anos já cansaram de contar as horas do passado, dos tantos anos transcorridos, e merecem que eu os aposente no fundo de uma gaveta. Não preciso mais de relógio. O aviso ininterrupto da contagem do tempo é hoje algo totalmente indiferente para mim. Feita sem muito esforço a contabilidade dos haveres cronológicos, tenho bem mais horas vividas do que por vivencia-las. Assim, não preciso que aquele aparelhinho analógico fique me lembrando a todo momento que a minha vida está passando feito um trem-bala japonês, e que eu estou ficando cada dia mais velho e próximo da boca do réptil…
Não preciso mais de relógio. Seguirei adiante sem que ele me diga se estarei pontual ou não para encontrar-me com as pessoas que eu quero bem. Vou aproveitar os pequenos atrasos na companhia de quem eu gosto, e farei as coisas mundanas que me trazem alegria sem olhar para o pulso, como se ele fosse uma espécie de censura do meu próprio prazer. Caso necessite saber as horas, pedirei ajuda a um amigo que seja tão antigo quanto eu já fui um dia.
Não preciso mais de relógio. Se dependesse de seus avisos dos compromissos não conseguiria dar e nem ganhar um beijo de despedida, e nem escutaria no carro até o final aquela música que me devolve ao primeiro amor da minha infância. Não que eu esteja fazendo aqui apologia à desídia, ao descaso – longe disso -, mas não preciso mais de relógio. Ele que fique com as horas acumuladas dentro do seu ventre miúdo, e que, se depender de mim, os ponteiros se enfarem da jornada e parem de girar no mesmo e monótono sentido.
Por que eu precisaria seguir por aí olhando as horas e catando respostas para tudo aquilo que não faz sentido? Um café e a janela do décimo primeiro andar escancaram que tenho mais um dia para salivar o paladar que a vida me oferece sem cobrar um centavo de minuto.
Não, eu não preciso mais de relógio…
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