Os herdeiros

Colunistas Geral

No dia 14 de dezembro de 2023 – este ano, portanto – comemora-se o centenário do Pacto de Pedras Altas, que selou a paz entre maragatos e chimangos, assinado no majestoso castelo de Joaquim Francisco de Assis Brasil. Segundo o que andei lendo por aí, a questão que motivou a Revolução de 1923 foi mais de hermenêutica do que rusgas políticas locais mal equacionadas. O artigo 9º da Constituição Estadual de 1891 dizia que “O Presidente exercerá a presidência por cinco anos, não podendo ser reeleito para o período seguinte, salvo se merecer o sufrágio de três quartas partes do eleitorado”.
O velho Borges de Medeiros, nascido na vizinha, altaneira e fria Caçapava do Sul, teve o percentual de votos de que falava o tal artigo, mas dos eleitores que votaram, ao passo que a oposição sustentava que seria de todo o eleitorado inscrito para votar, e aí não dava as três quartas partes. Como não se entenderam nas conversas de salão, acharam melhor resolver a quizília da interpretação legal do dito artigo nono com carneadeira e metralha.
É sempre bom salientar sobre as nossas insurreições, principalmente para os mais novos, que os postos militares eram feitos a facão, e as promoções cheias de uma justiça que prestava atenção aos detalhes, em especial à bravura quando se encarava de frente a estampa do inimigo. O que valia mesmo era a coragem, a estratégia a ser adotada no campo de batalha. Nos conflitos épicos do nosso Estado, as pessoas eram promovidas conforme a sua audácia e desapego da vida frente ao perigo. Muitas delas mal e mal assinavam o nome, por não terem qualquer familiaridade com as letras, mas eram de uma valentia impressionante – e Honório Lemes é o maior exemplo do que eu estou falando.
Chegavam pobres nas refregas, e delas saíam mais pobres ainda, com alguns troféus baratos e medalhas que não serviam para nada, nem para pagar a conta no bodegão da campanha.
Não quero dizer nada, mas me representa que aqueles senhores antigos, netos e bisnetos de farroupilhas, com seus bigodes torcidos para o alto e olhares severos, andam tristonhos, aborrecidos e até irritadiços por detrás das molduras onde descansam na eternidade das glorias.
É que eles eram extremamente discretos a observar o desenrolar das vidas dos filhos de seus filhos, com gestos de carinho, aparência e forma de trajar. Quase nenhuma diferença havia quando se vestiam para viajar, para reparar o gado no pasto, tomar parte em bailes, batizados ou irem a velórios. Usavam chapéu de aba larga e barbicacho. Camisas de cores circunspectas, sob coletes ou casacos. Botas de cano alto e bombachas quase sempre de brim. Dependendo da temperatura e época do ano, pala ou poncho.
Os lenços eram brancos, quando republicanos, ou colorados, se libertadores fossem. Os poucos apartidários adornavam o pescoço com lenço xadrez ou “petit-pois”, de matizes sóbrias. A cor preta, tanto no lenço como na camisa e bombacha, era sinônimo de luto fechado. Depois de meses, conforme o efeito da dor, aliviavam o sentimento da perda fazendo a barba e trocando o preto pelo xadrez.
As coisas eram simples, como as cenas campestres, como os hábitos, como a água que se bebe na concha das mãos lá na Fonte da Bica.
Pois alguns moços de hoje – claro que não são todos, mas são inúmeros – que se denominam guardiões zelosos de uma tradição secular e arraigada, descendentes daqueles senhores antigos, de bigodes torcidos para o alto e olhares severos, reverenciam durante o mês de setembro de cada ano a antítese de toda uma nobreza ascendental, ao desfilarem à deriva pelas ruas e avenidas sem ter a menor ideia do que comemoram. Numa das mãos seguram as rédeas do cavalo emprestado e na outra um latão de cerveja. Ignoram por completo, pois falta um mínimo de conhecimento das páginas do nosso passado, se Flores da Cunha, Leonel Rocha e Felipe Portinho foram protagonistas da Revolução de 23 ou formavam o meio-campo de algum time que disputou o charmoso Gauchão.
Num exercício de imaginação, posso deduzir qual seria a reação das forças de Estácio Azambuja, da coluna de Zeca Netto, ao verem interpretadas as suas gigantescas trajetórias por esses gaúchos cíclicos – e, repito, não são todos, mas a quantia só aumenta -, mais preocupados com o colorido das apertadas bombachinhas uruguaias do que com a história do seu povo, aquecida com sangue e cadáveres brotando na grimpa das coxilhas. Agora deram até para querer alterar o nosso hino, num pretenso revisionismo histórico desprovido de elementares substratos fáticos. Ainda bem que bateram em tapera!
Ah, como ficam mais tristes a cada setembro aqueles senhores antigos, de bigodes torcidos para o alto e olhares severos, descendentes de farroupilhas. Que a proteção dos vidros das molduras lhes seja menos sofrida..

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