O homem que o circo deixou pelo caminho

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Quando o Circo Irmãos Almeida se despediu da cidade, abandonou em frente à pracinha do hospital o Olegário. Antes, em Santa Maria, tinha deixado Sabala, um leão desdentado e pulguento, que era apresentado pelo locutor, no encerramento do espetáculo, como o temido rei de todas as selvas e matarias. Só que despejou o velho felino em local bem distante do centro, por causa da jaula, que fedia à carniça, e também para não dar tanto na vista da sociedade protetora dos animais, um pé no saco de quem costuma judiar da bicharada.
Tá certo que circo não é lugar de fera, mas Olegário não pode ser considerado como tal, pelo menos por enquanto. Embora não fosse artista, julgava-se peça importante das atrações anunciadas pelo alto-falante da chairada Chevrolet Veraneio, pois ajudava a erguer toda a estrutura e montar o palco. Era mais um “peludo”, como são chamados os que fazem esse trabalho braçal e sem qualquer valor aos olhos de quem paga para assistir às apresentações. Mandado embora que nem um cachorro cegueta, sob a desculpa de que o serviço bruto seria terceirizado, Olegário dorme hoje no mesmo lugar onde fora largado só com a roupa do corpo. Ele e um violão orelhano faltando a corda Mi, aquela mais fininha, essencial para se tanger as melodias da alma, mas é do instrumento que lhe vem o consolo e agora o sustento. Toca e canta o que reteve a memória, e atende algum pedido musical, em troca de dinheiro ralo. Sonha em voltar para o trailer perfumado da trapezista Teresa, ainda que o circo tenha tomado rumo ignorado. Quem viveu a maior parte da vida debaixo da lona não se ajeita no bulício dos povoados. Quem se criou sentindo o cheiro de serragem vinda do assoalho do picadeiro não suporta respirar fumaça de óleo diesel.
Encontrei-me com o Olegário antes do Natal, no bar do João Circuito. Disse-lhe que tinha notícias do circo. Havia feito uma apresentação em Garruchos. A última. Contei-lhe, entre um samba e outro – falo aqui simplesmente da canha pura com coca –, que um colega meu, morador na fronteira com a Argentina, tinha ficado amicíssimo do dono, que lhe confidenciou: coincidência ou não, desde a saída do Olegário a empresa circense passou a operar no vermelho. Faliu! E que a primeira providência, em caso de recuperação judicial, seria buscar o antigo funcionário, esteja ele onde estiver, e com direito a ser nomeado chefe da peludama.
Sim, claro que menti! Meu escasso senso de justiça me diz que podemos tirar de um homem qualquer coisa material, até a casa onde mora, mas jamais a ilusão. Essa, dentre todas as perdas, é a única irreparável. E irreversível. Quem perde o direito de sonhar perde junto a vontade de viver.
Olegário segue ainda sem teto e com a mesma roupa, mas, em compensação, tem como companhia fiel todas as estrelas do céu, isso sem contar a lua, que se chegou mais perto para ouvir suas cantigas que falam de fados e andorinhas. Quanto à Teresa, pode ser que volte para os seus braços, mas pode ser também que se empregue como diarista – nunca se sabe o destino de quem é errante. O amor é uma perigosa acrobacia aérea com os olhos vendados, e não tem rede de proteção que chegue a tempo quando a gente despenca lá de cima…

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