O Esquecido Chafurdo de Natal

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Era para ter escrito isso na semana passada, mas esqueci. Aliás, todos esquecemos, porque nos fizeram esquecer. Há exatos 50 anos, no natal de 1973, a Ditatura Militar provou, mais uma vez, que não aceitar a divergência era o parâmetro do governo.
No final dos anos 60 e início dos anos 70, inúmeros jovens, moços e moças, viviam angustiados com a situação do Brasil, que seguia subjugado por um regime sangrento. O que mais os desesperava era que esse poder então vigente sabia muito bem manter a maioria da população em uma situação de ignorância e, consequentemente, de conforto com o autoritarismo e suas violações. Para isso, tinha o amplo apoio dos órgãos de mídia, das escolas “sem partido” e das autoridades igualmente isentas. Todos sabemos a que se presta a isenção em tempos de barbárie: impunidade, desigualdade e violência sem fim contra vulneráveis. É o que esses jovens queriam combater.
A carta de Guilherme Gomes Lund, dirigida aos seus pais, que abre o Capítulo 14, do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade reflete perfeitamente o pensamento desses jovens na época. Guilherme resolveu agir e foi se juntar a quase uma centena de pessoas que partiram para a região do Araguaia. O objetivo era se engajar numa guerrilha engendrada distante das cidades, mas próxima a uma população historicamente sofrida e que já tentava resistir às várias formas de exploração violenta. Lá estava, até desaparecer para sempre, o sepeense Cilon da Cunha Brum.
Independentemente das razões políticas para a escolha do local, é incontestável o fato de que essas pessoas – estudantes, professores, enfermeiros, servidores públicos – nascidos tão longe, foram muito corajosas em abandonar suas famílias e se dedicaram efetivamente a melhorar as condições de vida de gente muito desamparada. E, de fato, ganharam a confiança da população. A que se sabe, Cilon atendia em farmácia, curava enfermos, fazia pão e produzia alimentos. Junto com ele, outras sete dezenas de migrantes de todo o Brasil.
As Forças Armadas, chefiadas pelo major Sebastião Curió, que depois até fundou uma cidade na região para virar deputado federal e prefeito, envolvido na mineração do ouro da Serra Pelada e Eldorado do Carajás, vieram a saber da Guerrilha do Araguaia quando ela já estava implantada há quase três anos e subdividida em destacamentos. Embora fosse uma comunidade pequena, isolada, o Exército dedicou a ela várias operações compostas por mais de cinco mil militares no total. Esses milhares de soldados sitiaram toda a região, torturaram indiscriminadamente centenas de pessoas da comunidade local, aprisionaram chefes de família, queimaram suas plantações e fizeram as mulheres de escravas sexuais. Tudo isso está nos depoimentos de ex-militares e moradores, coletadas em investigação coordenada pelo Governo Federal.
As primeiras investidas foram feitas por meio do Batalhão de Infantaria de Selva em Marabá e da Operação Carajás, em 1970. Em 1971 e 1972, houve as operações Mesopotâmia e Papagaio, todas com pouco sucesso na localização de integrantes da guerrilha, principalmente em razão da falta de experiência dos soldados para sobreviver nas matas. A partir de 1973, com essa experiência mais desenvolvida e após o aniquilamento do apoio local à guerrilha, chegou-se às definitivas e terríveis operações Sucuri e Marajoara. Quase todos os integrantes da guerrilha foram exterminados, mas nenhum corpo foi entregue a suas famílias. Muitos anos depois. apenas dois corpos foram localizados, os demais – como o de Cilon – encontram-se desaparecidos.
E foi exatamente num Natal, cinquenta anos atrás, que a guerrilha sofreu um de seus mais duros golpes no episódio que ficou registrado pelas Forças Armadas como “Chafurdo de Natal”. Os agentes da repressão chegaram, na manhã de 25 de dezembro de 1973, à área onde se concentravam cerca de 15 pessoas, entre elas o seu histórico comandante Maurício Grabois, o “Velho Mário”, que já estava cego na ocasião. O rapaz de nobres ideais, citado no início do texto, Guilherme Gomes Lund, estudante de arquitetura, então com 26 anos de idade, estava no local montando guarda. Foram todos executados. Existe grande probabilidade de que o sepeense Cilon estivesse lá. Mas os militares presentes na ocasião insistem em confundir datas e nomes, para que a incerteza permaneça.
A única coisa que se sabe é que até hoje, no cemitério municipal de São Sepé, um jazigo vazio espera seu corpo, e uma família espera respostas. Pouca gente sabe disso, e quem sabe, assim como eu, quase sempre esquece. Mas não por acaso. É que a história sempre é contada por quem vence, e há muitos anos é a intolerância e a violência que vencem no Brasil.

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