o tecladista e o pudim de calda

Colunistas Geral

Quando a gente acha que já viu tudo no miolo da circunferência do departamento musical, vem um pudim com calda caramelada e muda todos os nossos conceitos, todas as possibilidades de algum êxito na empreitada sonora. Que a vida de músico não é moleza, até os pinguins da Patagônia sabem disso. Ninguém quer saber se o cara que canta ou toca às devas é um pobre bicho, se passa fome, se tem mulher e filhos para sustentar. Cada um que se vire com os seus problemas, vociferam os do outro lado do balcão. O artista de barzinho, por exemplo, tem que ter uma paciência de tropeiro de lesma para encarar o brique, pois, enquanto se esgoela na frente do microfone, os frequentadores conversam num tom acima da música, e dão risada em sol maior! Quando os clientes dos botecos musicados batem palmas, geralmente é para chamar o garçom e pedir a primeira saideira, sem contar que, por vezes, o couvert é pago ao cantor que nem perna de anão pelo dono do bar.
Já o músico de zona pobre é primo-irmão do fodido e mal pago. Toca em instrumento emprestado, tem que trazer Boate Azul na ponta da língua e, ainda por cima, atender todas as sertanejas imploradas pelos desguampados que vão chorar as pitangas naqueles ambientes fumacentos e de escassa luminosidade.
Tenho, de minha parte, um respeito enorme por aqueles que vivem exclusivamente da música. São tanto quanto mais heróis que as professorinhas que lecionam nas bibocas. Durante a pandemia dava pena de ver artistas fazendo lives solidárias pela necessidade de ganhar o abatumado pão de cada dia.
Mas chega de voltas, contravoltas e rodeios e vamos ao que realmente interessa, ou seja, os fatos!
Campeão do futebol de veteranos em Santa Maria, categoria pé-na-cova, o dono do nosso time resolveu fazer uma comemoração na enorme casa dele, lá no Itararé. Só de pátio deve ter mais de um hectare a mansão desse meu amigo bem de vida, tudo arborizado, com churrasqueira no lado direito do galpão de alvenaria, palco ao fundo e mesas pelo costado. Coisa de primeiro mundo, troço nunca visto nas redondezas e adjacências.
Para abrilhantar a noite de gala das velhas estrelas e seus familiares, o patrão contratou um conjunto melódico que toca junto desde que a turma se conhece por gente: o Zé Custódio no teclado, o Arnóbio na guitarra e vocais e o Framboesa no contrabaixo e segunda voz. Todos egressos da construção civil. O Zé é mestre-de-obras, o Arnóbio trabalha como meia-colher e o Framboesa (Amâncio Galdino de Souza) bofeia como pedreiro. Claro que a música é um “bico” pra eles, uma forma de aumentar o salário que chega pelas caronas no final dos trinta dias.
Pois não é que o dono da festança – evidente que sem a mínima intenção – na hora dos brindes derramou cerveja no teclado do Zé Custódio. Coisa pouca, é verdade, quase uma baba, mas que serviu para preocupar o proprietário do valioso instrumento. Afinal, aquele aparelho harmônico e afinado era o seu maior patrimônio, e havia sido trocado pelo antigo – e mais uma volta em dinheiro – em razão de perda total um mês antes. Me pediu um pano para secar as teclas. Alcancei uma flanela que guardava dentro da caixa do meu violão. Secou com carinho, e quando quis me devolver disse a ele que poderia ficar de lembrança, pois o que eu mais tinha em casa é flanela, livros e garrafa de cachaça.
Curioso, como bom descendente dos beduínos, perguntei ao Zé, depois da carinhosa secagem, o que tinha acontecido com o teclado antigo, aquele que ele me disse ter estragado de um jeito sem remendo. Me respondeu, com uma ponta de tristeza na alma e um brilho opaco nos olhos:

“Nóis tava tocando num aniversário de 15 anos. Um povedo, com muito gritirio e risaiada. Cantado os parabéns, surgiu do nada uma véia de pescoço torto, cheia das cerimônia, carregando um pudim de leite condensado e calda a fuzéu. Acho que era a vó da aniversariante, pois bem despachada e já bombeando o microfone pra dizer uns verso em louvação à neta preferida. Pois não veja o senhor que a veterana, quando se veio pras banda do palco, trupicou no pezinho do meu teclado mimoso e derramou todo aquele pudim – com forma e tudo – no correr das tecla. Aquilo levantou um nevoeiro de açúcar queimado e pedaços daquela sobremesa gosmenta. Passado o fudúncio, tentei fazer uma música de bandinha alemã pra ver se alegrava o ambiente e só saia um flop-flop com bolha amarela do teclado. O ré sustenido vinha esparramando líquido melecado pelo alambrado da pianola, e quando eu carcava o dó malior, então, meus dedo grudava mais que carrapato em saco de touro charola. Depois daquela indiada não toquemo mais em festa de gurizada que tenha pudim escalado de sobremesa. Já perguntemo antes; vai tê pudim? Se tiver, nóis fora! Se o interessado insistir, até metemo calando, mas com cachê dobrado…”

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