Sonífero uso da palavra

Colunistas Geral São Sepé

Discursos se sucedem com um frêmito espasmódico nas festividades cívicas e pelas tribunas. Colocada a palavra à disposição, logo salta um orador que já espreitava o microfone com olhos de gavião mouro. De dentro do paletó, saca uma resma de folhas, limpa o assoalho da garganta e abre o peito: “Caro presidente, demais autoridades presentes e já nominadas pelo protocolo. Serei breve, diante do adiantado da hora”. E passa à leitura do calhamaço, que dura mais de hora. Fala invariavelmente o que falou o antecessor. De diferente mesmo, apenas o entono da voz, as bocas e caras. Cita as estatísticas, trata do nervoso mercado da bolsa lá fora e aplicação das algemas em graúdos aqui dentro. Ao terminar, assoma-lhe a nítida consciência de que fez a sua parte para melhorar a vida dos membros da distinta plateia. Mas a ovação esperada não vem. É que uns bocejam pelos cantos, e os de perto da porta deixam o recinto de fininho em direção ao sol das ruas.

Também o eminente intelectual, anunciado como detentor de largas honrarias recebidas, ocupa horário nobre do noticiário nacional para informar à rude plebe que o somatório de aspectos estruturais acabou por se constituir em fator impeditivo de um crescimento parcimonioso uniforme, desiderato tão almejado pelo conjunto da sociedade civil, como um todo. No lixão da cidade, velhos definhados e crianças moncosas seguem disputando à tapa os restos de comida com a corvalhada gabola. É mister, segundo o mesmo analista, mirando a câmera com olhar de desprezo, detectar no grupamento dos indivíduos, em estado gregário, o caráter basilar da fissura laborativa, objetivando colocar óbice ao esgarçamento do tecido social. Até lá, o povão, que é meio gente, meio gado, vai compondo a ladainha dos resignados rumo à cabeceira do pântano, rezando alto e lambendo a baba que ressai do cansaço da canga.

Muito embora a insistência do engomado mequetrefe em catalogar o ouvinte como sócio remido da ordem dos bichos adestrados, ninguém está obrigado a aceitar, como cláusula pétrea, as cantilenas que são ditas em tom pastoso e cerebrino.

Pois agora eu, que nunca fui adepto da peroração sedosa, vou fazer uso da palavra para dizer às minhas senhoras e aos meus senhores que não se enganem. O mundo está cheio de frases de efeito, mas à cata de um norte que lhe empreste os sentidos. Não adianta procurar nas palavras perfumadas o remédio para o alívio de uma enfermidade de que até a embalagem se perdeu. Se o tempo gasto nas falas fastidiosas dos púlpitos e compêndios fosse convertido em atos concretos de compaixão ao desvalido, o nosso burgo não seria essa peça bizantina que se apresenta inútil nos palcos das praças. Chega de discursos rebuscados, gotejados de salamaleques, quando falta o emprego decente, a moradia decorosa, a segurança trivial, e sobra o corrupto insaciável, o bandido sem remorso, o habitante de tugúrios. Sem falar na impunidade, o mais metástico dos carcinomas coletivos.

“Palavras, palavras, palavras…”, que nem Hamlet, de Shakespeare, respondeu ao conselheiro Polônio, ao ser indagado sobre qual livro estava lendo. Prefiro o gesto solidário à oratória impressa. Com ele, podemos mudar o mundo. Com ela, apenas a ilusão de que a coisa mude…

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